A racionalização e a economia de água foi o tema mais discutido no início deste ano em algumas regiões do Brasil que enfrentaram uma das piores estiagens dos últimos tempos. O debate recaiu não só sobre a agricultura, apontada como a grande vilã do consumo deste recurso nas lavouras, como na própria cana-de-açúcar, que tem grande parte da sua produção no Estado de São Paulo, um dos mais afetados pela falta d’água. Mas será que tudo que falam sobre o uso da água na agricultura e na produção de cana é verdade?
Para se ter uma ideia, cerca de 18% das áreas de produção no mundo são irrigadas, sendo responsáveis por 44% da produção mundial de alimentos. Especificamente no Brasil, segundo dados de 2012 da ANA (Agência Nacional de Águas), temos cerca de 5,8 milhões de ha irrigados, correspondendo a 8,3% da área de produção agrícola. Considerando o crescimento da área irrigada dos últimos dois anos, estimado pela Animaq-Csei (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas – Câmara Setorial de Equipamentos de Irrigação), projeta-se hoje cerca de 6,2 milhões de ha irrigados. Levantamentos oficiais coordenados pela ANA e Senir (Secretaria Nacional de Irrigação) indicam que o potencial de irrigação no Brasil é de 29 milhões de ha, ou seja, utilizamos apenas 21% do potencial que dispomos.
De acordo com Luciano Meneses, especialista em recursos hídricos e coordenador de outorga da ANA, um levantamento prévio indicou que das outorgas válidas da ANA, 51,4% do volume total outorgado é destinado para a finalidade de irrigação. No entanto, apenas 3,7% do volume total é destinado especificamente para irrigação de cana-de-açúcar. “Do total dos volumes destinados somente para a irrigação das outorgas válidas da ANA, aproximadamente 7,2% dos volumes são destinado para a cultura da cana.”
Conversamos com especialistas para desvendar os mitos e verdades sobre o uso da água na agricultura e especificamente na cultura da cana-de-açúcar.
AGRICULTURA CONSOME 70% DA ÁGUA EM SÃO PAULO
Na 21ª Semana Mundial da Água, realizada em Estocolmo, na Suécia, em 2011, foi divulgado que o uso doméstico de água no mundo representa 10% do consumo total, sendo 20% do consumo ligado ao uso industrial e 70% para a agricultura. O mesmo documento apontou que nos últimos 50 anos a população global dobrou de tamanho, enquanto o total de áreas ocupadas pela agricultura cresceu apenas 12%, revelando o enorme ganho de produtividade que houve, parte deste ganho sendo significativamente representado pela expansão das áreas irrigadas.
Contudo, informações do DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica) apontam que, no Estado de São Paulo, a irrigação consome 42% da água, sendo seguida pelo uso urbano (32%), depois uso industrial (25%) e outros fins com 1%. Isso prova que o Estado de São Paulo apresenta índice de áreas agrícolas irrigadas bem abaixo da média mundial.
USO DE ÁGUA PARA IRRIGAÇÃO É POUCO OU MAL CONTROLADO EM SÃO PAULO
Como todos sabem, os recursos hídricos (águas superficiais de rios e lagos, bem como águas subterrâneas de poços) se constituem em bens públicos que toda pessoa física ou jurídica tem direito ao acesso e utilização. Então, cabe ao Poder Público a sua administração e controle. Assim, se alguém quiser fazer uso da água terá que solicitar uma autorização, concessão ou licença ao Poder Público, a chamada Outorga que, quando concedida, estabelece finalidade de uso da água, além de vazão, volume, período de tempo e demais condições de uso da água outorgada. No Estado de São Paulo, o órgão responsável por emitir outorgas desde 1996 é o DAEE.
É importante destacar que quando o DAEE concede outorga para captação de água de determinada origem, sabe-se que foram preservadas as características de fornecimento para outros fins mais prioritários (uso urbano e criações de animais, por exemplo) e outorgas anteriormente emitidas naquela localidade/bacia hidrográfica considerando os momentos históricos de piores vazões naquela fonte. Inclusive, o DAEE monitora constantemente a disponibilidade hídrica no Estado de São Paulo.
A Figura 1 mostra a situação de demanda, até o mês de fevereiro, em comparação com a disponibilidade de água em cada uma das 22 bacias hidrográficas do Estado. Cabe explicar que a chamada vazão de referência representa uma quantidade de água disponível por unidade de tempo que garanta os usos múltiplos outorgados ou estimados para cada bacia, além de um montante adicional que garanta a manutenção dos ecossistemas terrestres e aquáticos dos corpos hídricos da bacia.
A imagem mostra que a situação, até fevereiro, era gravíssima na bacia do Alto Tietê (onde está a capital do Estado), sendo crítica nas bacias Piracicaba/Capivari/Jundiaí e Mogi-Guaçu. Justamente por isso que as bacias Alto Tietê e Piracicaba/Capivari/Jundiaí tiveram suas outorgas para irrigação restritas ou até eliminadas, dependendo da região dentro destas bacias.
ONDE HÁ CANA-DE-AÇÚCAR, HÁ FALTA DE ÁGUA
Dados lançados em novembro de 2014 pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecurária e Abastecimento), apontam que as bacias hidrográficas onde há cana são, em sua maioria, as que se
acham com a sua vazão de referência demandando abaixo de 50% da disponibilidade.
A exceção ocorre apenas em parte das bacias Mogi-Guaçu e Piracicaba/Capivari/Jundiaí. Desta forma, pode-se observar que, onde há crise hídrica no Estado de São Paulo não é onde se cultiva cana.
O pesquisador da Unidade de Execução de Pesquisa (UEP) da Embrapa Tabuleiros Costeiros em Rio Largo, AL, Antonio Santiago, líder do projeto ‘Pegada Hídrica da Cana’, concorda. “A afirmativa é falsa. Não se pode atribuir a falta de água a uma única causa. Dentre as principais podem ser citadas: descuido com as nascentes e matas ciliares; forte diminuição de chuvas nos últimos anos; aumento no número de usuários (agricultura, indústria e saneamento); e falta de políticas estruturais”, destaca.
Ronaldo Resende, pesquisador da Embrapa Tabuleiros Costeiros (Aracaju, SE), especialista em sistemas de irrigação, diz que não há conhecimento ou embasamento científico que suporte ou aponte uma relação entre volume de chuvas de uma região e o plantio de cana.
“O regime pluviométrico de uma região é resultante de um elevado número de fatores macro e microclimáticos, os quais interagem com um também elevado número de fatores ambientais como relevo, vegetação etc. A cultura agrega quantidade considerável de carbono ao solo, principalmente com a atual prática de cana colhida sem queima, o que pode favorecer as condições de retenção de água no solo. Ademais a expressividade do seu cultivo é secular em regiões com maiores índices pluviométricos. Do ponto de vista da demanda de água, a cana evapotranspira de 1200 a 1500 mm durante seu ciclo, não muito diferente de outras culturas perenes, incluindo florestas plantadas ou semi-perenes”, afirma.
Já Regina Célia de Matos Pires, pesquisadora do Instituto Agronômico (IAC), de Campinas, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, explica que a fotossíntese e a evapotranspiração das plantas são afetadas por diversos fatores relacionados à espécie vegetal e o estágio de desenvolvimento, a disponibilidade de água e de nutrientes, do clima e dos tratos culturais associados ao cultivo. Desta forma, o crescimento das plantas e o consumo de água consistem em processo dinâmico e por isto o monitoramento é ferramenta importante no processo.
“Assim a diferença no consumo de água das culturas ocorre em função da espécie, duração do ciclo, época do ano, do estágio de desenvolvimento vegetativo, da condução dos tratos culturais, da população de plantas, da demanda climática, da disponibilidade de água no solo, dentre outros fatores. A distribuição e a ocorrência de chuva estão associadas a um grande número de fatores e não deveria ser atribuída a uma única causa. Vale lembrar que a precipitação é um dos elementos do clima de maior variabilidade de ocorrência. Neste sentido é importante ressaltar que o monitoramento e a composição de séries históricas de clima são fundamentais para o desenvolvimento de estudos na área”, diz.
CANA-DE-AÇÚCAR USA MUITA ÁGUA PARA PRODUZIR, ÁGUA QUE FAZ FALTA NAS CIDADES
O conceito de pegada hídrica tem sido recentemente introduzido como um importante indicador do consumo humano de água, na tentativa de minimizar os impactos ambientais. Desta forma, mais do que o consumo direto das pessoas, a pegada hídrica mostra o consumo indireto da água contido nos alimentos, produtos e até serviços.
A pegada hídrica estimada da cana-de-açúcar no Brasil é de 137 m3 por t de cana, ou para os mais interessados, de 1,61 m3 para cada l de etanol hidratado disponível nos postos de combustível.
A primeira vista, este número pode suscitar para os mais apressados dizerem que esta água que vai para a cana-de-açúcar faz falta para outros usos. Conforme levantamento feito pelo Programa “Cana pede Água”, na safra 2011/2012 apenas 2,31% da área de cana do Estado de São Paulo receberam irrigação com água. O que aconteceu foi de que 30,3% dos canaviais paulistas receberam irrigação com vinhaça, um resíduo da fermentação alcoólica do caldo de cana, e não com água. Assim, podemos dizer que, no Estado de São Paulo, a pegada hídrica da cana é normalmente aumentada de 0,37% devido aos 2,31% da área de canaviais que é irrigada com água numa lâmina anual de 2.170 m3 por ha.
A cana-de-açúcar é, portanto, produzida quase que exclusivamente no Estado de São Paulo usando a água que vem das chuvas. Praticamente não se usa água captada de rios, lagos e poços para irrigar cana, não havendo, assim, conflito de água entre cana-de-açúcar e outros usos.
CANA-DE-AÇÚCAR DESPERDIÇA MUITA ÁGUA PARA PRODUZIR. SERIA MELHOR PRIVILEGIAR OUTRAS CULTURAS
Estima-se que, enquanto a pegada hídrica (PH) da cana-de-açúcar no Brasil seja de 137 m3 por t, este número sobe mais de 16 vezes para 1 t de soja (PH = 2.202 m3 de água por t de soja), mais de 26 vezes para arroz (PH = 3.624 m3/t), mais de 81 vezes para café (PH = 11.195 m3/t) e mais de 141 vezes para carne bovina ((PH = 19.435 m3/t). Estes dados mostram que a cana-de-açúcar é uma das culturas mais eficientes em converter água em produto final.
IRRIGAR CANA-DE-AÇÚCAR NÃO SE JUSTIFICA QUANDO HÁ POUCA ÁGUA
A experiência de outros países têm nos mostrado que a pegada hídrica da cana irrigada, quando bem controlada, é menor do que aquela de sequeiro (que usa apenas água de chuvas). Na cana irrigada, a água é disponibilizada à planta nos momentos e quantidades que ela precisa em cada fase do seu período de crescimento. Isso aumenta a eficiência de uso da água.
Quando a planta depende apenas das chuvas, é impossível que quantidades corretas sejam disponibilizadas nas épocas certas. De acordo com Marco Antonio Viana, diretor de Novos Negócios da RPA Consultoria e superintendente do GIFC (Grupo de Irrigação e Fertirrigação de Cana-de-açúcar), há números mostrando que se pode produzir a mesma quantidade de cana com menos de 60% da água que hoje usamos, se ela for provida por meio de chuvas e complementada por irrigação.
“Poucas usinas utilizam irrigação de cana com água. A grande maioria das usinas do Brasil faz agricultura de sequeiro. Cerca de 22% dos canaviais brasileiros receba a aplicação de vinhaça, porém, quando falamos de irrigação de cana com água, daí este índice é muito mais baixo. Estima-se que hoje, menos de 13% dos canaviais brasileiros recebam água através de irrigação”, diz.
Resende diz que a questão é que a necessidade de irrigação se evidencia justamente quando o regime de chuvas não é normal. Nas regiões tradicionais de produção da cana, o regime pluviométrico até agora prevalecente redunda em uma pouca necessidade de irrigação, muitas vezes não justificando economicamente seu uso. No entanto, nas atuais regiões de expansão de cultivo da cana (Oeste de São Paulo, Centro-oeste) e mesmo nas regiões tradicionais do Nordeste do País, a distribuição da precipitação é irregular ao longo do ciclo de cultivo, o que resulta em períodos de déficit hídrico que dependendo de sua magnitude, duração e época de ocorrência, faz com que o nível de resposta da cultura à irrigação justifique economicamente sua adoção.
“Nessas regiões, incrementos de produtividade da ordem de 30% a 50% são frequentemente observados. Em trabalhos experimentais realizados pela Embrapa nas regiões Centro-Oeste e Nordeste do Brasil incrementos de produtividade da ordem de 40% foram encontrados em cana irrigada de forma plena, em relação à cana sem irrigação. Em uma usina da região Sul do Estado de Alagoas, a produtividade média obtida de cana irrigada por gotejamento subsuperficial é de 70 t/ha, enquanto em regime de sequeiro a produtividade média obtida é de 101 t/ha. A questão é que muitas vezes a comparação da demanda de água da cultura no seu ciclo com o total de chuva no mesmo período nos mostra uma situação confortável, porém, quando avaliamos a magnitude do déficit hídrico da estação seca, vemos que se faz necessário minimizar esse déficit com o uso da irrigação”, destaca Resende.
Já Santiago diz que, de um modo geral, a pegada da cana de sequeiro ainda é menor do que a cana irrigada. Entretanto, deve ser levado em consideração o tipo de irrigação e o volume de água disponibilizado. Quanto maior a eficiência dos sistemas de irrigação menor será a diferença, em termos de pegada hídrica, dos plantios cultivados unicamente com a água das chuvas.
“Nenhum empresário rural adota uma tecnologia ou metodologia sem que haja estudos econômicos sobre o impacto das mesmas. De fato a cana-de-açúcar cultivada nas regiões tradicionais do Estado de São Paulo, em regime de chuva normal, apresenta boas produtividades, não havendo assim necessidade de suplementação hídrica. Entretanto, na maioria das áreas consideradas de expansão, assim como da região Centro-Oeste e do Nordeste brasileiro, o cultivo de cana que recebe irrigação possibilita bons retornos econômicos, pois aumenta a produtividade da cultura”, diz Santiago.
VERTICALIZAÇÃO SUSTENTÁVEL
Vários estudos têm sido desenvolvidos em relação a resposta da cana a irrigação. Estes precisam ser analisados de forma adequada para que a contribuição seja efetivamente alcançada. De um modo geral, segundo Viana, a irrigação a produtividade e a qualidade, favorece a longevidade do canavial e a redução de custos indiretos, em especial quando se considera que com o aumento de produtividade se atinge a verticalização da produção e com isto se reduz a pressão por novas áreas.
“A resposta da cana à irrigação é variável de acordo com a região, tipo de solo, volume e distribuição de chuvas e a resposta da cultivar à água. No Brasil a maior parte da área de cana cultivada não utiliza a irrigação, no entanto, o valor da produtividade média do País não atinge 80 t/ha. Por outro lado, em áreas de cultivo consideradas aptas ao cultivo da cultura sem a irrigação, algumas cultivares atingem mais de 200 t/ha. Em regiões com déficit hídrico acentuado, o uso da irrigação, mesmo que adotada apenas no caráter de salvamento tem fundamental importância para a produtividade da cultura no ano seguinte após o corte e na longevidade do canavial”, destaca Regina.
Tanto pelo aspecto ambiental como do ponto de vista econômico, a busca pelo aumento da eficiência de uso de água deve se constituir na meta de todo irrigante. Isso significa produzir mais cana com menos água. Para alcançar esse objetivo, o produtor irrigante deve lançar mão de uma gama de conhecimentos e tecnologias disponíveis.
Segundo Resende, o primeiro passo é aumentar o aproveitamento da chuva, de modo a reduzir a necessidade do uso de água de irrigação. Para isso, uma alternativa se refere à adoção de práticas agrícolas conservacionistas ou escolha de épocas de plantio/corte que melhor sincronizem o período de maior demanda da planta com o de maior oferta de água oriunda da precipitação, entre outras. O segundo ponto é a utilização de sistemas de irrigação mais eficientes na aplicação de água. Em tese, a eficiência dos sistemas se amplia na seguinte sequência de métodos: localizados (gotejamento subsuperficial), aspersão convencional (lateral móvel, pivot central, carretel enrolador) e superfície (sulcos), sendo o principal ponto o conhecimento e a adoção de um bom manejo de irrigação.
Segundo Viana, nas áreas aonde a irrigação vem sendo muito utilizada, as usinas investem em sistemas de reserva de água, o que acaba beneficiando e controlando a vazão dos rios, melhorando o uso da água, inclusive para a população da mesma bacia hidrográfica. “É interessante observar que como a produtividade nas áreas irrigadas é maior, a produção torna-se mais estável, evitando-se a necessidade de expandir a cultura para novas áreas.”
“Embora a prática da irrigação da cana venha recebendo críticas em função da utilização de recurso hídrico para produção de biocombustível (dicotomia food x fuel), vale lembrar que a cultura é, historicamente, entre 50% e 55% destinada à produção de açúcar e, portanto, significativamente alimentar. Para isso, o esforço de P&D deve focar métodos e principalmente estratégias de manejo da irrigação, além dos estudos de demanda hídrica para diferentes ambientes de produção, visando minimizar a quantidade do recurso (água) por quantidade do produto (cana, açúcar e etanol). Em outra vertente, há um esforço de investimento do setor canavieiro em infraestrutura de reservação hídrica própria, reduzindo o impacto sobre os corpos hídricos locais. Tais esforços possibilitarão estabelecer, de forma mais abrangente, a viabilidade técnica e econômica da irrigação na cana-de-açúcar”, finaliza Resende.
Fonte: Revistarpanews – Natália Cherubin